sexta-feira, 31 de julho de 2009

Senhor da Guerra (Lord of War - 2005)




O tema polémico do terceiro filme de Andrew Niccol forçou o realizador a procurar financiamento para o mesmo em terras europeias, uma vez que todos os grandes estúdios norte-americanos, receosos de queimarem as mãos, se recusaram produzi-lo. E ainda bem! Livre para o realizar com autonomia criativa, e portanto com maior fidelidade à sua visão, o que as apertadas amarras impostas pelas leis de mercado das produções americanas jamais permitiram, Niccol pôde revelar todo o seu talento, desarmando-nos impiedosamente perante a crueza da realidade do tráfico de armas.

Desde logo, a história é narrada na primeira pessoa, através de Nicolas Cage que veste a pele de Yuri Orlov. Num momento de iluminação, este ucraniano, emigrado em Nova Iorque, vislumbra as enormes potencialidades comerciais da violência grassante em Little Odessa, o bairro onde vive. Ao invés de a combater, decide colocar-se no topo da cadeia, iniciando o que se revelaria uma brilhante carreira de traficante de armas, por fornecer aos gangs e mafias locais os meios para perpetuarem o seu reinado de terror. Mas Yuri depressa se apercebe que são os vários reinados de terror semeados pelos quatro cantos do globo que maiores oportunidades de lucro oferecem, sobretudo os mais desfavorecidos onde sempre há alguma guerra ou rebelião que é proveitoso alimentar.

Assim, ao longo do percurso da personagem principal, vamos sendo infiltrados nos meandros do negócio do tráfico de armas, as suas vicissitudes, os bastidores, os esquemas e os seus protagonistas por intermédio de um homem de família por quem até sentimos alguma empatia.

O próprio genérico encarrega-se de resumir, de forma muito original através de um plano-sequência digital extremamente bem conseguido, os passos do processo de produção e distribuição de armamento. Partindo do ponto de vista de uma pequena bala, acompanhamos o caminho que esta percorre desde o momento em que é fabricada até terminar certeiramente na cabeça de uma criança em África. Além de nos fazer engolir em seco com a sua cena final, que imediatamente nos coloca no tom do filme, o genérico é em si mesmo uma lição de boa realização, merecendo por isso esta referência.

Para além de realizar o filme, Andrew Niccol assina também o respectivo argumento, que à semelhança dos seus trabalhos anteriores, é marcado pela aguçada inteligência e pela incisão perturbadora das críticas sociais implícitas.
Usando do sarcasmo que lhe vai sendo habitual, Niccol põe a nu a hipocrisia corrosiva dos pilares em que assenta toda a organização social contemporânea e denuncia abertamente a perversidade dos sistemas políticos e económicos, manipulados com habilidade, para benefício de apenas alguns e em prejuízo de todos os outros.

Em cerca de 1hora e 40 minutos, Yuri Orlov dá-nos um curso intensivo sobre a política internacional que verdadeiramente faz girar o mundo. Aquela em que governos legitimamente eleitos patrocinam golpes de estados ilegítimos, aquela em que a democracia serve os propósitos da tirania, aquela em que em nome da liberdade se promove a opressão e a guerra. No fundo, limita-se a confrontar-nos com aquilo que todos nós já sabemos, mas expõe a verdade com tal lucidez e realismo que não conseguimos ficar indiferentes perante a sordidez que sustenta o funcionamento da nossa sociedade dita civilizada. O realizador levanta o tapete e mostra a sujidade escondida debaixo das alegadas boas intenções das grandes potências para justificar as suas ingerências na governação dos povos subdesenvolvidos.

Neste contexto, e como seria de esperar, o Polícia do Mundo esteve privilegiadamente sob a mira de Niccol. A crítica dirigida aos Estados Unidos da América, sob a forma de ironia implacável, resultou nalgumas das cenas mais perturbadoras do filme, por exemplo, quando Yuri explode de felicidade e beija a televisão ao assistir ao final da Guerra Fria. É arrepiante!

Conforme já se referiu, também os trabalhos anteriores de Andrew Niccol foram marcados pelas duras e sub-reptícias críticas tecidas aos sistemas de valores sociais instituídos. Porém, se em “Gattaca” e em “Simone”, o realizador faz uso de conceitos algo futurísticos para acusar as incongruências e a subversão de tais valores, no “Senhor da Guerra” apresenta-nos uma realidade actual, visível em cada noticiário ou página de jornal dos nossos dias. Em consequência, consegue afectar-nos de modo mais directo e apesar de ser melhor assimilado, nem por isso é mais facilmente digerido.

Se em “Gattaca”, a manipulação genética dá vida ao sonho hitleriano tornando possível criar pessoas perfeitas e uma sociedade elitista, segregadora, onde não há espaço para a mediocridade, e “Simone” representar a resposta tecnológica às preces de Al Pacino pela actriz perfeita, isenta daquelas falhas que definem a humanidade, o “Senhor da Guerra” assume em toda a extensão a verdadeira natureza humana.

O sabor, a esperança deixado pelas obras anteriores na vontade intrínseca do Homem de se superar e ser melhor, ganha sabor amargo com Yuri Orlov, que não luta contra aquilo que é, nem tenta ser diferente. Aceita-se e aos outros, tentando tirar o maior partido possível dos esquemas engenhosos sobre os quais montamos a nossa vida social, política e económica.

Esta personagem pouco emocional, de um pragmatismo impressionante, demonstra que até os mais dramáticos cenários de guerra não passam de meros jogos de poder, aliás muito apelativos, se soubermos e jogarmos de acordo com as regras que lhe são próprias e que o nosso protagonista rapidamente aprendeu.
Para Nicolas Cage, “Senhor da Guerra” marca o seu regresso aos bons papéis, após “O Tesouro” e afins. O actor encarna com grande credibilidade a personagem fria e desprendida do homem objectivo, com metas muito precisas, que não podem ser ameaçadas por algo tão subjectivo como valores morais ou culpa. E nem mesmo os fortes laços familiares sobretudo com o seu irmão Vitaly (Jared Leto), foram suficientes para convencer Yuri a levar uma vida moralmente aceitável. A interpretação tocante do actor Jared Leto proporciona momentos de intensidade emocional que evidenciam ainda mais a frieza quase desumana do nosso protagonista principal. Vitaly sofre as dores que o irmão não sente, manifestando-as através de todas as escolhas erradas que faz.

O facto da história ser contada por Yuri e de acordo com a sua própria visão dos acontecimentos, resulta num reforço muito eficaz da dimensão do drama subjacente à temática do filme, porque a conduta fleumática do nosso protagonista não passa de um reflexo da conduta igualmente indiferente dos seus “parceiros comerciais” - as potências armadas do mundo. Tanto para o criminoso internacional, Yuri Orlov, como para os homens de Estado à frente dos destinos das nações mais poderosas, o objectivo é só um – fazer dinheiro.

E nesta frieza, que se torna enormente cruel para o espectador, Niccol vai tecendo as suas opiniões, revelando os acontecimentos que pretende sem nunca forçar a tomada de partidos. Contudo, entre riso cínico e riso paródico, o “Senhor da Guerra” leva-nos numa viagem alucinante pelo terceiro mundo e temos como guia um carismático ditador André Baptiste (Eamonn Walker). Esta é uma viagem que aconselhamos todos a fazer, pois nos tempos em que vivemos, é bom tomarmos consciência, através desta ficção, do estado do mundo actual para o qual damos o nosso inestimável contributo diário.
Por: The Mind - 06/11/2005

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