domingo, 17 de maio de 2009

A vida imita a arte.... mais um...

Os poetas, quando escrevem novelas, costumam proceder como se
fossem Deus e pudessem abranger com o olhar toda a história de uma
vida humana, compreendendo-a e expondo-a como se o próprio Deus
a relatasse, sem nenhum véu, revelando a cada instante sua essência
mais íntima. Não posso agir assim, e os próprios poetas não o
conseguem. Minha história é, no entanto, para mim, mais importante
do que a de qualquer outro autor, pois é a minha própria história, e a
história de um homem — não a de um personagem inventado,
possível ou inexistente em qualquer outra forma, mas a de um homem
real, único e vivo. Hoje sabe-se cada vez menos o que isso significa, o
que seja um homem realmente vivo, e se entregam à morte sob o fogo
da metralha a milhares de homens, cada um dos quais constitui um
ensaio único e precioso da Natureza. Se não passássemos de
indivíduos isolados, se cada um de nós pudesse realmente ser varrido
por uma bala de fuzil, não haveria sentido algum em relatar histórias.
Mas cada homem não é apenas ele mesmo; é também um ponto único,
singularíssimo, sempre importante e peculiar, no qual os fenômenos
do mundo se cruzam daquela forma uma só vez e nunca mais. Assim,
a história de cada homem é essencial, eterna e divina, e cada homem,
ao viver em alguma parte e cumprir os ditames da Natureza, é algo
maravilhoso e digno de toda a atenção. Em cada um dos seres
humanos o espírito adquiriu forma, em cada um deles a criatura
padece, em cada qual é crucificado um Redentor.
Poucos são hoje os que sabem o que seja um homem. Muitos o
sentem e, por senti-lo, morrem mais aliviados, como eu próprio, se
conseguir terminar este relato.
Não creio ser um homem que saiba. Tenho sido sempre um homem
que busca, mas já agora não busco mais nas estrelas e nos livros:
começo a ouvir os ensinamentos que meu sangue murmura em mim.
Não é agradável a minha história, não é suave e harmoniosa como as
histórias inventadas; sabe a insensatez e a confusão, a loucura e a
sonho, como a vida de todos os homens que já não querem mais
mentir a si mesmos.
A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo,
a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro. Homem
algum chegou a ser completamente ele mesmo; mas todos aspiram a
sê-lo, obscuramente alguns, outros mais claramente, cada qual como
pode. Todos levam consigo, até o fim, viscosidades e cascas de ovo de
um mundo primitivo. Há os que não chegam jamais a ser homens, e
continuam sendo rãs, esquilos ou formigas. Outros que são homens da
cintura para cima e peixes da cintura para baixo. Mas, cada um deles é
um impulso em direção ao ser. Todos temos origens comuns: as mães;
todos proviemos do mesmo abismo, mas cada um — resultado de uma
tentativa ou de um impulso inicial — tende a seu próprio fim. Assim é
que podemos entender-nos uns aos outros, mas somente a si mesmo
pode cada um interpretar-se.


Hesse Herman - Demian

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